como vai seu jardim?


Se você olhar bem, verá que o mundo todo é um jardim.
(O Jardim Secreto)



mary mary
toda ao contrário
como vai seu jardim?

o meu anda revirado
com folhinhas de cuidado
para uma linda flor-de-lis

mary mary
toda ao contrário
por que é belo assim?

nosso jardim de cabeça
pra baixo
cheirando terra e alecrim

mary mary
toda ao contrário
penso tanto no fim...

as flores do campo
entrelaçadas
orvalhando jasmim

mary mary
toda ao contrário
como vai seu jardim?

o meu é uma dália amarela
cercado de asas
borboletas
que sorriem pra mim.


Ele me bebeu

meu túmulo
é o fundo do mar.
de olhos fechados
e lodo no corpo
posso olhar de dentro
a petrificação de mim.

meus braços cruzados
recuados à pegajosa
carne de pedra e
pretura
não se movem
seguram a pequena bolsa:
perene companhia
no azul pro-
fundo

ainda assim um sorriso:
retalhos ventando
na memória embebida
de encantamento.... e

tanto foi que a
ampulheta parou.

de sua areia me fiz
tão certa
e firme
que nunca mais saio daqui.

Libélula

libélula,

no seu olho de encanto
no canto do olho
eu vi

as cores floridas
das suas asas
transparentebelas

e o seu corpo
tão fininho
veio voando
redor de mim

o movimento
orvalhando
o ar

gotículas
de nós

aí pousar
num baobá:
fonte infinita
desse rio
que corre em mim

e não chega a você,
libélula:
   flor
que voa...

Através do espelho

Ilustração de John Tenniel


Que gosto tem seu mundo,
menina de aventuras?
O pão saltitando no chão
é só uma borboleteiga inquieta
que já vai voar.

Meu mundo
é um espelho distorcido
sem rainha branca ou vermelha
um humpty dumpty
quadrado e escuro
(o que já não o torna
um humpty dumpty)

Não há quem me recite
um enorme poema písceo,
Alice.

Sabe me dizer que rio
devo pular para
avançar uma casa?
Não ouço resposta
das flores, não,
elas não me respondem
(talvez o canteiro seja fofo
demais)

No jogo do lado de cá
não há tempo para sonhos
não me torno uma rainha no final
corremos sem fôlego
e continuamos na mesma árvore,
sempre e sempre...
o relógio é um chapeleiro maluco,
mas nunca tem chá.

Que gosto tem seu mundo,
menina?

O meu, já nem quero mais provar.

Algum lugar fora daqui



minha cabeça
estava enfiada no aquário.
eu sufocava na água
de pensamentos
que eu não podia suportar.

a sinfonia dos meus erros
ressoando tão perto
tão perto de quem eu era,
eu tinha urgência
em acabar

meus olhos fechados
para a luz, as flores
já pensadas
para o final
meu momento
a minha vibração
dentro do vidro

os peixes mortos
na água que deslizava
das paredes dos meus ais.
fui conduzida pelo eco
agudofundo...

quebrou-se o vidro.
súbito que foi
não vi
não senti
não mais
nem dor

meu viveiro:
estilhaços
de esquecimento.

A florista

desconhecida.
longe, recostada à cadeira
coberta pelo tronco
os olhos perdidos
num lugar inacessível
(só dela)

a florista sem flores
nas mãos outonais
fim de primavera
e início de solidão

nas roupas escuras
já o desejo de recolher
as folhas perdidas
no chão

e quem é que se perdeu
ao secar da última
flor?

e lá estão seus olhos
— não sua alma —
no passado informe
já descampado

a florista pensa
em voltear a cadeira
diluir-se
ao corredor distorcido
e sem flores
nem alma
partir.

a tinta não se move.


Big Eyes

de Margaret keane




pela fresta da porta
desvelei o quarto
a cama os sapatos
tortos no chão

com meus grandes olhos
percebi as roupas
sujas e sem corpo no
piso branco ainda
sem sangue

eu criança amedrontada
acuada pelo lado de cá
da parede com marcas
de memória e medo

me vi só, com a sombra
de minha cabeça grande
de menina inda pequena
com água salgada

sim, e eu olhava
e não havia ninguém
a me confessar
a mentira
na escuridão
por trás de mim

pelo vão eu vi
eu vi no meu traço
delineado no papel
o espaço entre mim
e o assombro

e continuo lá
impregnada nas paredes
e portas e rachaduras
lembranças ocas
de meu cadáver
anterior.


Pipa

Na tentativa de olhar o céu
tropecei os olhos numa pipa
presa no verde da árvore.
A mim revelou-me não um menino que chora,
mas uma mulher de cabeça inclinada.
A pipa me olhava na brevidade do vento
e aquilo me comovia.
Continuei meus passos,
com a impotência de bicho sem asas.
Em meio aos galhos, a certeza do que era simples
e maior que eu.
Nada podia fazer, não poderia salvá-la...
Lentamente, voltei os olhos ao chão.
Nas raízes expostas estava uma folha,
já seca de tanto esperar
quem a guardasse num livro de Alberto Caeiro.
Apoiada ficou em seus versos.
E a pipa, velha amiga, ora me olha de longe,
ora eu a vejo delicadamente livre
em meus pensamentos.
Não há historiografia no gesto de ler
as árvores.

Agosto de 2015

Nightmare

recuo no espaço
gelado canto do quarto
animal ameaçado.
recuo do medo que me pressiona
contra a parede.
faço força,
contrário à saída da porta
estagnada pelos ponteiros.
correria do frio constante
não me fossem as pálpebras escuras.
e se o medo é uma pressa
que vem de todos os lados,
Rosa não me pode salvar.
as pétalas me tocam os pés
com secura e sem perfume.
de onde vêm as mãos
que me sufocam o crânio?
buscando a explosão
desse grito abafado.
não me posso salvar, ruído.
carcaças mentais aflorando
nas paredes.
Já posso acordar.

Agosto de 2014

A moça sorri

Quebrada no meio da sala, a moça sorri
melancia desdentada.
Mais uma no meio da sala, da rua,
do nada.
Tentou correr, gritar o vizinho.
E como em sonho, a voz não fez eco.
Tempo de uma paulada.
Seus filhos desesperados na casa da avó
que nada pôde fazer, uma pena.
O mundo é grande, mas não era dela.
Debruçada no tapete de sonhos que nunca chegaram,
se lembra dos filhos, por isso sorri.
Mais uma estrela caída no meio do céu
escuro da sala, da rua
do nada.

Setembro de 2015

Vai, pequena

Vai, pequena
ciranda de roda.
Canção de ninar o tempo.
Olhos atentos à borboleta
que invade sua mão,
sentada ali, na beira do lago.
Rodopios e bater de asas
Voe agora.
Não tenho coração
de pião que gira
e cai.
Vai, pequena
pensa no que não pode mudar.
E chora
na palma do campo.
Reza a proteção da natureza
Sente o cheiro do outono
Folhinhas pulando corda
no ar.

Setembro de 2015

Baobá

toco um dedo do teu pé
tua raiz
embaixo da chuva que
cai, somos duas
somos iguais.

dá-me um pouco da tua força,
árvore em silêncio,
resignada ao toque do vento.
— preciso saber o que traz tua calma...

a água que escorre em teu
corpo e umedece teus pés
é fonte também do meu desespero.
— não posso te ouvir,
saber o que sentes enquanto
estou aqui ao teu lado
te olhando
esperando uma resposta
na folha que cai.

talvez eu saiba mesmo
que tentar abraçar o tempo
é ato impossível
como escutar teus galhos.
 — eu volto amanhã.

02/10/15

Boca-de-leão


num céu de flores
desmanchando
em pingos de chuva
vejo seu manso corpo
disforme no espaço
e as flores correndo, descendo
e voltando ao seu tronco
como monarcas
em direção ao sul
na pupa de um tempo
que não passa
e demora, demora esse não-ser
do seu corpo ainda
longe, nublado                                                                                                                  
ouço o percorrer de pétalas
atordoadas buscando
o mar
entre pernas e passos
e abismo
e só vejo seu corpo
no ar.
ela é azul.



26/09/15

embora

então , quando eu tiver ido, ficarão as flores para você cuidar não saberá qual foi a última vez em que as reguei o tempo de cada uma seu br...