como quem recebe batidas repetidas no meio da cara
tenho apoiado as mãos no rosto e tentado respirar
também eu morro um pouco 
não é uma escolha
tenho andado com a pressa de mil formigas
atordoadas, mas precisas no trabalho
de não perder os pulsos
não se pode contar com tijolos encaixados
por mãos que não sabem o caminho de casa
como quem recebe repetidos chutes
tenho sentido o gosto vermelho da noite
e não consigo fechar os olhos 
meu deus, não é possível fechar os olhos
como quem recebe mil socos na cara e
fica com os olhos inchados a vida atravessada 
um borrão escuro preso na garganta
cuspir essa merda toda um incêndio
saber o ponto exato onde acertar 
também morre quem atira, é fato
mas é preciso atirar



porém nada dizia


vivi com a sombra de meu pai nos olhos
quando me deitava para dormir, era nele que pensava
nas palavras que nunca ouviu, no abraço que não deu
chorava nas tardes por imaginar a notícia de sua morte
enterrei-o muito antes do tempo
mas as dores já estavam em mim enterradas 
com tanta angústia e desespero 
que me doíam o peito desde pequeno tão cansado


*




desdobramento

as rugas em volta dos olhos
desenham a passagem do tempo
traçam caminhos recém descobertos
quando a manhã atinge o rosto
dentro dos olhos existe
a luz de uma vida inteira 
não  há sinal de sombra 
ou marca de passos perdidos
o olhar direto e altivo 
desloca o fio contínuo 
enxerga entre as correntes 
naufrágios e desalinhos
e contorna no fim dos dias
as chaves de todas as portas

*

colheita

recolhi do quintal o corpinho de uma abelha
segurando-o nas mãos, fiquei pensando
o que seria daquele corpo 
com mãos boas que o sustentassem 
mas me lembrei ainda 
que abelhas não precisam de mãos boas
porque se sustentam sozinhas
em conjunto,  sustentam o mundo
e o céu de poucas nuvens e nenhum mel
coloquei o corpinho no chão, tão sozinho
notei, então, que havia perto dele 
outro corpo de abelha
a morte das abelhas escapou-me pelas mãos
e cortou dos meus olhos toda doçura

*

parapeito

há tanto barulho lá fora, amor
chuveiros queimados e risos vazios
a cada noite distante dos seus olhos
minhas mãos ficam mais frias
sem velas, meu barco segue o ritmo 
de paradas muito longas 
longas como as notas mais baixas
do seu violão
quanto tempo se passa na lonjura
insistente dos sapatos nas ruas
passo as mais variadas horas
neste silêncio cortado 
pelas ambulâncias da tarde
espero, ainda 
espero, tecendo recortes de páginas
há pouco barulho lá fora
e sua voz é tudo o que vejo

*

fratura

vivíamos os dias mais escuros
com a volúpia de construir ainda
um mundo possível, acima de nós 

abaixo já existiam pés quebrados 
e linhas tortas portas fechadas 
ventando memórias do fim

as suas mãos me traziam para dentro 
de uma vida sem sombras 
no tato de não medir esperas


[para nascer de mim a mulher sem promessas
tive que carregar a mulher fraca que sempre fui 
e fazer da escuridão minha casa 
desenterrar os ossos da carne
sentir nos nervos a imensidão dos pulsos abertos]

*

da minha vida


| a Delfino |

meu amor,
eu espero todo dia
pela sua chegada
por sua voz na minha janela
me dizendo
você é o meu amor

*


lição de casa

sair de casa para encontrar a estrada
porque da casa sabe quem mora nela
e não há estrada possível sem pés que busquem
o caminho de casa é sempre o mais difícil
conheço o caminho da sua casa com a palma dos pés
a casa era a casa e nela não havia amor
eu nunca tive um lugar onde me sentisse em casa
buscar a casa, falar da casa
uma casa vermelha com um casal dentro
uma filha que nunca estava em casa
perdi a casa e tudo que estava nela: meus óculos, meus sapatos
porque não há caminho possível sem pés que busquem
uma casa

*

embora

então , quando eu tiver ido, ficarão as flores para você cuidar não saberá qual foi a última vez em que as reguei o tempo de cada uma seu br...