no dia em que o chão caiu das minhas mãos
eu não soube como andar
o amor não tem que pesar toneladas
o amor não tem que pesar

eu te amo

porque os caminhões nos atropelam
e ainda saímos vivos
sempre estou lá para tirá-lo
das ferragens e chorar de perto
as dores que elas lhe causam
porque eu sonhei com caminhões
que vinham com tudo para cima de nós
e me assusta o fato de eu ter gritado
eu te amo, eu te amo é tão estranho
como acordar chorando por tê-lo visto
sorrindo depois da queda
eu te amo é tão estranho quanto
esperar a dor passar
você entre as ferragens
uma infestação de formigas nas folhas
em que você escreve
estamos presos entre ferragens
e levantar caminhões para dizer
eu te amo é tão estranho

*
Aliança

| Julia de Carvalho Hansen |

O meu garoto não é alto
mas as suas mãos compridas
tem tal delicadeza
com que precisão
alcançam os vagalumes

do meu espírito intranquilo
entre o búfalo e a borboleta
estou precisamente neste estado
em que as larvas não arrebentam
nem as cobras trocam a pele à toa.

Vou deixando as coisas pra trás
embora seja impossível soltar
meu garoto não é bem meu
o tempo todo ele observa
o crescimento das samambaias

a mesma cordialidade com que ele observa
o inesgotável afeto dos animais domésticos
também é um mistério pra mim
a sua capacidade de só cultivar mistérios

sem códigos, quilometragem ou mesuras
meu garoto - pois eu te sei, vem
e diz assim pra mim
quero você.


como se fosse a (c)asa*

escrever a partir da asa
da borboleta
seguir suas linhas
escrever e partir

partir as asas ao meio
escrever pelo meio da asa
seguir suas linhas
escrever e partir

parir um poema de asas
entrever suas pausas
seguir suas linhas
escrever e partir

*

a asa uma casa sem chão





* escrever a partir de outra casa
seguir suas linhas
escrever e partir
gosto de poder andar de meias, às três da manhã, nesse chão que escorrega e quase absorve todas as dores do mundo. poderia pisar noutro chão, supor suas pausas e risos, beijar seus dedos como quem escorrega no abismo. poderia ser outro chão, mas não há onde pisar. as cicatrizes duram uma eternidade sem sono. seguir as linhas, medir os pontos e dar de cara com a parede. nada parece mais óbvio. os pés de frente ao abajur que não se acende há muito tempo. as mãos sem lugar no fundo, sem lugar no chão. e de pausa em pausa, abrir os pulmões e não saltar. nada parece mais óbvio.

não se pode levar muito a sério

o tom baixo da sua voz me exigia, vagaroso,
um esforço de todas as células e era impossível
desviar o olhar dos seus olhos e das suas mãos
preparando o café que eu tomaria, mesmo sem gostar

meu corpo fervia à medida da água
como é fácil criar a cena, enquanto se anda sem rumo
no meio dos ipês rosa de junho
(que eu não sabia que existiam)

não se pode levar muito a sério
a ideia de estar sem rumo no meio do poema ou do ipê
já que o poema não pode ser rosa e não sente
o frio fino do outro poema ou desta noite

sentar-se à avenida, sem ter o medo de cair nos buracos
de dentro da cabeça, não mais ter medo
das suas mãos e do que elas podem fazer
mas este não é o sentido do poema, não é o medo,
mas o sexo e o fogo fervendo a água do café

não se pode levar muito a sério
a ideia da água fervendo no meio do poema
porque noite passada sonhei que estava num show do radiohead
e, embora pareça tentador estar lá, você também estava e
atrapalhou todo o andamento da história do poema

entrar no seu tom não foi difícil, eu não sei gritar
bater palmas ou gargalhar não parece mais fácil
um poema não ri com você como eu podia




sem pulso

o poeta sempre escreve no escuro
as palavras estão na ponta dos dedos
[um skatista passa na avenida
posso ouvir o barulho atravessando a noite
e o poeta está sempre fugindo]
uma chuva de nuvens abertas
fecha o dia que segue em frente
uma recorrência que não se justifica
querer nascer querer morrer
o nome que sumiu da página
sobrevive no escuro dos olhos
ler poetas em tempos de terrorismos
chorando sozinhos no meio da noite
uma recorrência que se justifica
o luto sem morte de uma palavra




[a solidão é tudo que está em volta]
mas esqueci o lápis que marca o limite
de onde nascem as conchas
e de onde brotam as pedras
a Júlia gosta do som das conchas
e de como elas choram no espaço em branco
olhar em volta é a parte difícil
mas não há para onde não olhar
tudo parece suspenso e o balão ainda está lá
porque há manhãs que nunca chegam
e o silêncio se repete, repete a luz e a cena
porque nos deixamos cortar




Alice me disse

compro menos livros agora
todos que eu desejava
estão ao lado da cama
não há ausência
em não pensar em nada
há um poema se abrindo na minha frente
dentro de todos os livros fechados
Alice me diz de baleias e leões
baleias que brotam do chão
um enorme rabo de baleia
[fugir com ela]
o leão atrás da porta
um passo em falso e ele acorda
às vezes sonho com leões que me perseguem
eu, no topo, sempre inalcançável
a fuga do irracional, diz o terapeuta
fugir num sonho e achar o poema
a pena no poema tem mira e não acerta

Não estou preparada para a morte. Não a minha morte. Para ela me preparo todos os dias. Saio correndo, à espera de tropeçar numa pedra, bater a cabeça no meio-fio, naquele lugar da cabeça onde tudo é fatal. Ando de bicicleta, defeituosa nos freios, e desço um enorme morro esburacado. Atravesso sem olhar para os lados. Abraço estranhos. Busco a morte, distraidamente, mas ela sempre me escapa. Para a minha morte me preparo como se passasse um café amargo (que nunca bebo, pois não gosto de café).
Não estou preparada para a morte dos poetas, para a morte das folhas e dos bichos de estimação. Não estou preparada para a morte de quem dorme do meu lado. De quem me sorri do ônibus e atravessa a rua, sempre atento. De quem toma um sorvete e me oferece um pouquinho. Não estou preparada para a morte que não depende de mim. E estou sempre me despedindo.

é como se



tivesse esse mar aberto rasgando o peito
e a noite na luz da chuva na minha janela
e eu só queria que você passasse na avenida
molhasse os pés naquela poça ensolarada
e pedisse para trocar os sapatos aqui no quarto

*

[fica mais leve o peso do meu coração]
quando você sorri como se não soubesse
a mágoa que me corta o riso no meio
daquela frase

alinha

Tanya Ling


na linha aguda destas palavras sujas
poder apagar e fechar o ponto
e o nó que nem sei costurar
a recorrência se justifica
você não fica e nunca
rubel, você num poema
e sua voz cortando a noite
você numa linha, do trem e não
do poema e da cinza
[nunca levar à boca
o cigarro]
nunca o canto que passa
na linha aguda do frio
e um rio e o mapa
incompleto da cinza
e você dizia:
é fácil ser feliz
e eu ria



Ser seiva, veneno ou fruto


Quanto desejo de chuvas
E de rebrotos
E de renovos 
E de ombros nus
E de amoras 
Sobre as raízes descobertas!
Manoel de Barros

É preciso começar dizendo do não entendimento que tenho de signos e mapas e deuses. Muito ou pouco se perde numa leitura que já começa assim. O livro da Júlia de Carvalho Hansen quer ver e quer que vejamos, que aprendamos a ver o poder ver. Ver é privilégio dos que param, em seu próprio dom e ritmo, e olham como formigas que tateiam palavras, no branco do chão da página. 
Como o solitário de Manoel, é preciso fazer uma curva diante das flores, das plantas e se deixar levar e se elevar nas linhas de Seiva veneno ou fruto (2016). Ao mesmo tempo em que o olhar se volta para dentro da terra e para o que dela brota, há um mergulho por águas e fogos, há um sentido em direção ao céu. Tudo isso num jogo de ver e desver, de visível e invisível: e tudo aquilo que é invisível em você / é tragado (invisivelmente) / para o buraco negro. 
Para ver é necessário luz, embora a gente saiba que não se impede o anoitecer. Ainda de dentro da noite, sondando na confusão o que desconhecemos, a voz poética,  visionária  e guia, abre os caminhos rochosos, nos mostrando que palavras abrem portas. Palavras abrem portas, abrem nossos olhos às raízes que o outro vê e cultiva. Ser seiva, aquilo que alimenta e dá vida, palavra que comemos como frutas doces. Poder ser veneno, não retirar as ervas daninhas. 
Há força e fluidez nos poemas de Júlia, há sangue morte e queda. Há um frescor de musgos na boca da terra. 

foto do facebook da Júlia

04:10 nota

Aida Markiw 


morangos caídos na página
como na cesta que leva para casa
mofados, caídos, em guerra
há maneiras mais importantes
de estar sozinho neste mundo
perder a cesta, deixar cair os morangos
esmagá-los com os pés sujos
na fúria de não haver raízes
sentir na gengiva a acidez
queimando toda possibilidade
de descanso
a júlia não fala de morangos
quando pensa na linguagem espiritual
das coisas
porque a carne pesa muito, e sangra




apressa

caminhar sozinha na avenida à noite
com medo de ser engolida pelos carros
ou pelos homens que estão fora deles
seria uma preocupação inútil
não fossem as tantas notícias que evito ler
todos os dias
não fosse aquele homem me encostando
às três da tarde, no meio da rua
um homem sem camisa, provavelmente bêbado
me assusta o fato de ele estar bêbado a essa hora
me assusta o fato de ele ter se aproximado
tão facilmente
e a forma como ele atravessou na frente do carro
sem o medo de ser engolido
o  medo que me engole quando saio
sozinha à noite na avenida


3:38 nota



diariamente leio sobre poetas críticos teóricos
do meu tempo e de outros em busca de respostas
mais que isso em busca de perguntas
que me tirem de onde estou
a linguagem é esse deslocar-se na geografia
dos mapas incompletos das palavras
de Alice, Marília ou Júlia
elas sempre sabem o que dizer na hora de dizer
quando perguntam sobre o que um poeta deve saber
elas sempre sabem:
uma vida interessante
a solidão do homem na linguagem
o ficar pensando e se perguntando se a poesia
é isso mesmo que se pensa dela
ou nela mesma
diariamente me pergunto se faz diferença
que eu cite uma poeta em meu poema
isso não o coloca em pé de igualdade,
aos pés de Ana C., ao pé do ouvido de Alice
nas palavras delas e nas minhas
sempre há o que sobra ou o que falta
um ar de que não veio o que se esperava
diariamente elas passam por meus olhos
e ficam numa imagem
que não consigo capturar
diariamente abro as notas do celular
e tento um poema
mas o cursor para
porque ele tem sempre que parar
diariamente

embora

então , quando eu tiver ido, ficarão as flores para você cuidar não saberá qual foi a última vez em que as reguei o tempo de cada uma seu br...