depois de dois meses

Rafa - Coletivo 277


o mormaço seca as folhas e os cabelos
não escrevo e nem poderia
um filme de natal em cujo nome
não me prendo fala para as paredes
aquele clima, ele sempre volta
e perdura porque o vento não leva
cair assusta, quando se é criança
e você nunca mais sente medo [dizem]
a velha história, azeitonas
uma carta que chega na hora errada
sim, é uma carta porque é natal
os olhos pesam mais cedo
e o homem do filme
descobre que não tem muito tempo de vida
aquelas cenas que nos comovem
porque sempre há uma criança
que depende dele
e nos lembramos que não passamos
de crianças dependentes
de alguém
qualquer coisa
alguém
passaria dentro de um carro qualquer, roendo as unhas no mormaço da tarde. cortaria os cabelos e encheria o piso com o algodão preto na queda. numa bicicleta feliz, passaria de mãos dadas com a filha, sorrindo e olhando as vitrines. atravessando os olhos num mormaço em algodão, sentaria. ouviria o barulho da máquina que corta os cabelos negros. de dentro da vitrine roeria as unhas de mãos dadas com a tarde. abraçaria a queda numa bicicleta enquanto o algodão preto ouviria o barulho do piso. quebraria a vitrine, enchendo os olhos de mormaço. um mormaço que atravessa a rua e chega onde não está.





Passar distraidamente pelas coisas. Sem me dar por elas. Não ser atravessada por elas. Não sentir por elas. Não sê-las. Ser eu mesma, e só.

catavento

Uvas verdes com gosto da noite.
Havia nelas a suspensão de toda loucura.
Mastiguei não somente a fruta,
mas a angústia que dormia e ardia no sufoco.
Deixei as sementes na cama, na trilha de Fróes.
Elas brotaram em brasa.
O copo d'água embaixo do abajur
lembrava o sono da luz e nada se movia.
Era preciso acender apagar acender
apagar a brasa que queimava os lençóis
e quase fervia a água.
Não, as uvas foram engolidas.
O vestígio de sua morte
havia ficado na cama, inerte, esperando novo plantio.

urgências de maio

é que você não memoriza os detalhes
do meu dia que lhe conto ao telefone
nesse fim de maio
é que eu preciso fazer,
assim como todos os poetas,
um poema sobre maio
a luz de maio, o frio e as chuvas de maio
(ainda que não tenha chovido
 sobre os detalhes do meu dia)
e se você não ouve,
não observa as palavras,
não mastiga seus sons,
não ousaria fazer um poema sobre maio
e os detalhes que não memoriza
assim, tento na apressada partida
de maio fazer com que olhe e mastigue
as palavras que lhe escrevo em maio
quando, mais velha, sinto que nada se passa
que as horas não cansam de olhar à janela
o cheiro do frio que maio deixou

viver é apenas um pequeno hábito

a fumaça me salva
mais uma vez a vida
quando devia me afogar
no tempo.
cancelo a primeira versão
e jogo no escuro a lembrança.
entre os dedos amasso o cigarro,
deito sobre meu cansaço.
palavra por palavra a cinza escorre
queimando o que resta,
mas a ruína comporta o mundo
e agora o mundo sou eu, sem ombros

das variações


passo pelo barulho da fábrica
tão apressada quanto as máquinas
                 lá dentro
nenhum olhar me atravessa,
exceto a ventania que precede
a chuva e me acende o voo impossível
há um fogo nestas palavras
que não pude espelhar na hora
(no agora da sua passagem)
e quando a chuva caiu
não houve gota ensolarada
que mergulhasse em mim
havia um sopro lento
denunciando o transitório
visto da minha janela

o beijo

quando uma lágrima espessa
brota destes lábios
é porque dentro deles
tua língua há de ter navegado
tão calma e profundamente
que de não aguentar o mergulho
minha boca inteira
go
te
ja


black iris - georgia o'keeffe
ir comprar comida
e no caminho
tentar não cair
em algum buraco
no chão
ou
dentro
da cabeça

qual o seu nome?

crazy
toys in the attic
I am crazy

Alice,
hoje é só mais um desaniversário
afinal
não é o seu dia
e isso não muda nada

crazy
over the rainbow
I am crazy

saia da frente do espelho
antes que seus olhos a engulam
nessa fagulha de luz

tear down the wall



embora

então , quando eu tiver ido, ficarão as flores para você cuidar não saberá qual foi a última vez em que as reguei o tempo de cada uma seu br...