a vida não passa de uma sombra errante

                                                                                                           
                                            


 | de Maria Gómez |



                                      a Proust


os prazeres e os dias
rolam escada abaixo
feito uma bola de pingue-
pongue inalcançável
e você não vê as árvores
com seus imensos galhos
se contorcendo
para tocar o céu.
do chão, enterrado nas entranhas
da terra, cava mais fundo
um lugar onde finalmente
a bolinha pare de rolar

engarrafamento

a cidade amedronta
sobretudo à noite
quase não saio de casa
tenho medo dos carros
vindo sem limite
atropelando o tempo
poluindo o olhar
atravesso somente
se o sinal fecha
tenho medo de carros
uma vez um deles
me pegou
não bati a cabeça
cinco dias no hospital
tive medo de morrer
prometi rezar todos os dias
com o tempo me esqueci
rezo algumas vezes
minha fé é vacilante
como o meu caminhar
inseguro, vulnerável
embora eu o queira sólido
tenho medo de deus
ou de não crer
tenho medo de carros
e da noite na cidade
ela amedronta
e cheira à pressa
e fumaça

Um poema de Olga Savary

Olga parece ter nos observado no prazer da tarde, no gesto simples de chupar laranjas.
Nos aproximamos pela palavra, corações abraçados num mesmo desejo. Leio este poema e o faço meu, revelador de minha própria existência:


QUERO APENAS

Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.
Além de mim
- e entre mim e meu deserto -
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto de meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.
- Olga Savary

existirmos:

a pair of shoes, Van Gogh

o corpo imundo caindo
não se parece com as flores
de um ipê rosa no outono.

a calçada é um poço
de relva empedrada
pesando a chuva,
este suor no jardim
de trânsitos cegos.

o egoísmo ignora
a identidade do homem
sua barba de algodão,
vassoura sujando o cimento

pele portando a tragédia
de sua biografia.

signifique este homem
pela pena de si mesmo.

existe este homem acima da terra?

silenciosamente o seu rosto
assume a natureza
do sapato desgastado.

trânsito

o ônibus passa
e para.
da calçada, olhos
atravessam o vidro.
olhares bifurcados
insustentáveis em sua procura.

o vidro é uma armadura
reveste os ossos
improdutivos depois
das seis.

do lado de fora, o estrado
prolifera pernas e olhos
num espetáculo desastroso
de nunca chegar.

transito em passagens
nos recortes diários
de uma janela inorgânica.

olhos em guerrilha

I

dos olhos

fantasmas cansados
em solidária companhia.
incorporam-se à boca, à beira do barulho.

repetem, noite adentro, a fumaça
como uma cauda ausente de forma.
num esforço de pedra,
resistem com armas de nuvens.

II

da guerra

o despertador da guerra obriga um lado
mínimo relâmpago caindo
em sílabas nas pegadas e bocas .
estoura em segundos
feito a merda que sai.

III

do corpo

carrega os olhos soterrados nas pálpebras,
agora cegos, acumulam memórias.


das ideias de espuma

hoje parece domingo
assim angustiado
de nunca terminar

[enquanto lavo roupas
vejo o menino que discute
com seu velho avô]

tanta água suja
dos meus dias escuros
a alma pesa no sabão

as roupas guardam mágoas
é preciso esfregá-las, deixar
o cano sugar em redemoinho
estes pensamentos não claros

o cheiro do amaciante
eufemiza a sujeira
que não sai da cabeça

roupas no varal

distração de pensar
é  engano.

tutorial

quando se formou
em maquiagem
não sabia
que passaria os dias
colorindo outros rostos
e apagando o seu.

tópos

quem define meu lugar?
se não enceno frases:
definições performáticas
de tudo.

cada peça na espera
de um encaixe,
um todo de partes
destroçadas.

tanta inteligência
sem prática
nos discursos floridos
de conceitos ocos.

o preto ainda morre
a arte não salva
o desconhecido

o desejo curioso
não nasce na miséria
o pobre não fala:

flutua
    nas
         letras

estudos culturais
o pé na poeira
o boné o suor

(representação falha
teoria vã)

intelectuais engajados
e a senhora sonha
a barriga roncando
as crianças no chão

reflexão
sobre
reflexão

e nada de novo
debaixo do sol

que queima a pele
do cortador de cana.


aqueles dias, esses outros - dias



cinzas e chuvosos
foram aqueles dias
que sucederam
à notícia.

impossível o sorriso
em meio à tempestade
ou menor sinal de sol.

aflitos os olhos
correndo entre árvores
pedrinhas no chão
o céu daquele dia.

possível fotografar tudo?

(com os olhos, não)

um pensamento:
ouvir incansavelmente
o canto daquelas aves

possível gravar no coração?

são só mais memórias acumuladas
outras como há tanto tempo
outro tempo outro

tantos cantos descobertos
cheiros de flores em
narinas de criança

a casa não suporta
mais vozes

possível sair sem retorno?

ah, aqueles dias
     como esses
vieram sem vocativo
inevitáveis embaixo
das horas.

embora

então , quando eu tiver ido, ficarão as flores para você cuidar não saberá qual foi a última vez em que as reguei o tempo de cada uma seu br...