desdobramento

as rugas em volta dos olhos
desenham a passagem do tempo
traçam caminhos recém descobertos
quando a manhã atinge o rosto
dentro dos olhos existe
a luz de uma vida inteira 
não  há sinal de sombra 
ou marca de passos perdidos
o olhar direto e altivo 
desloca o fio contínuo 
enxerga entre as correntes 
naufrágios e desalinhos
e contorna no fim dos dias
as chaves de todas as portas

*

colheita

recolhi do quintal o corpinho de uma abelha
segurando-o nas mãos, fiquei pensando
o que seria daquele corpo 
com mãos boas que o sustentassem 
mas me lembrei ainda 
que abelhas não precisam de mãos boas
porque se sustentam sozinhas
em conjunto,  sustentam o mundo
e o céu de poucas nuvens e nenhum mel
coloquei o corpinho no chão, tão sozinho
notei, então, que havia perto dele 
outro corpo de abelha
a morte das abelhas escapou-me pelas mãos
e cortou dos meus olhos toda doçura

*

parapeito

há tanto barulho lá fora, amor
chuveiros queimados e risos vazios
a cada noite distante dos seus olhos
minhas mãos ficam mais frias
sem velas, meu barco segue o ritmo 
de paradas muito longas 
longas como as notas mais baixas
do seu violão
quanto tempo se passa na lonjura
insistente dos sapatos nas ruas
passo as mais variadas horas
neste silêncio cortado 
pelas ambulâncias da tarde
espero, ainda 
espero, tecendo recortes de páginas
há pouco barulho lá fora
e sua voz é tudo o que vejo

*

embora

então , quando eu tiver ido, ficarão as flores para você cuidar não saberá qual foi a última vez em que as reguei o tempo de cada uma seu br...